quinta-feira, janeiro 22, 2009

"O Evangelho segundo o João" - Roberto Vieira

Não. Não fiquei triste com a morte dele. Pra que mentir? Não pude me vingar. Eu preferia que ele nem tivesse existido. Pouparia muitos do desemprego, da vergonha. Você não imagina o que é rirem de você. Milhares de pessoas rindo de você, como se você fosse um palhaço de circo mambembe. Até mesmo seus amigos, seus filhos, rindo.
Eu sempre joguei sério. Na bola. Sempre fui respeitado. Quando era pequeno rezava todas as noites para ser um craque. Um jogador de futebol. Eu acreditava nas minhas orações. Obedecia meus pais. Pedia a benção. Vim jogar no Rio. Virei capa de revista. Comecei a sonhar com a seleção. Foi aí que meu mundo virou de pernas pro ar.
Eu o conhecia das peneiras. Um aleijado. Dava pena. Chegava calado e saía mudo. Quando os técnicos viam aquelas pernas eles o mandavam embora. Mas ele sempre voltava.
Foi então que um dia eu soube que ele enfeitiçou o Nilton. Logo o Nilton, meu ídolo! E foi escalado pra jogar no Botafogo. E começou a fazer gols.
Imaginei que devia ser piedade divina e fiquei na minha. Um dia nosso destino iria se cruzar. E seria seu fim.
Coronel e Jordan tinham conversado comigo:
'Cuidado!'
Eu fiquei rindo. Ele também tinha enfeitiçado os dois. Prometi a mim mesmo que eu ia acabar com aquela palhaçada.
Chegou o dia. Domingo. Maracanã lotado.
Batem o centro. Vem a primeira bola e eu me antecipo. Sério. Na bola. Toco para o ataque e volto correndo para minha posição. Sem pena. Pois o que Coronel e Jordan sentiam era pena. Eu ia mostrar ao mundo a farsa das pernas tortas.
A segunda bola escapou de suas chuteiras.
O primeiro tempo se encaminhava para o fim quando ele domina a pelota. Eu entro no meio do joelho dele. Sem pena. Pra quebrar. Ele cai. Olha o joelho. Levanta.
Alguém na geral grita:
'Quebra ele!'
Ele sorri. Para a geral e para mim. Como um passarinho no alçapão. Aquilo me desconcertou. A pancada que eu dei poderia derrubar uma parede. Mas ele levantou sorrindo pra mim.
O Maracanã lotado.
E a bola chegou até ele um segundo antes de mim. E ele partiu na direção do gol. Eu atrás. Ele parou, súbito. Eu passei, lotado. Voltei e dei um carrinho. Ele escapou pela direita. Eu levantei e ele driblou pela esquerda. Beijei o chão. Ele cruzou na cabeça de Paulo Valentim. Gol.
Perdi a conta das vezes em que fui driblado. Não vi mais a cor da bola. O Botafogo venceu por 6x2. Alegria do povo.
Porém, um lance ficou gravado em minha memória. Sem dribles. Pisei num buraco. Chorei de dor. Ele partia em direção ao gol. Seria o sétimo gol. A torcida já gritava '7, 7, 7'... As mesmas pessoas que gritavam 'quebra, quebra, quebra'.
Inexplicavelmente ele parou e tocou a bola para fora. Tocou a bola para fora pra que eu fosse atendido.
Fratura. Aleijado. Ele me ajudou a sair de campo.
Nunca mais nos vimos.
Eu vim trabalhar nessa fábrica. As capas de revista eu guardo lá em casa.
Com o tempo ele virou gênio. Tão aleijado quanto eu. Cheio de mulheres. De fama.
De vez em quando vem um jornalista como você vem me entrevistar.
Quer saber a verdade. A verdade?
A verdade é que não. Não fiquei triste com a morte dele. Pra que mentir? Não pude me vingar.
Eu preferia que ele nem tivesse existido...

Publicado sem autorização: http://oblogdoroberto.zip.net/

quarta-feira, janeiro 14, 2009

Calor Du-Caraí

(O post é uma tentativa de responder ao nosso caríssimo leitor anônimo, este, reclamou da falta de postagem no mês de janeiro. Espero que as dúvidas sejam por fim, esclarecidas.)

Tava um calor dos diabos, está ainda, não sei por que tenho a mania de falar no passado, quando ainda estou imerso até o pescoço no inferno. Calor, úmido, pesaroso, mais que isso, denso, pesado. O ar do ventilador, morno e soprava como gêiser, lentamente, o vai e vêm ruidoso só fazia aumentar o calor. Afora o hálito quente do ventilador não havia um sinal de vento, uma brisa sequer, nem nem. Na rua, o asfalto, o cimento das paredes, delgados, alucinantes, flácidos, moles, e tudo isso ressoava na pele, e eu derretia, derretia. Voltei imediatamente à casa. Não é possível pensar agora, a derme a suar de bica, os órgãos – sinto-os cozinhar, o juízo fervia, escorria pelas orelhas, e eu me esforçava para não respirar demasiado rápido, nem um movimento brusco, buscava a inércia, etérea, eterna e perfeita. Faltam sinônimos nos dicionários para tanto calor.

O banho, a água quente e a inevitável suadeira ainda na água. Escaldante. O suor vira grude, uma outra camada se forma sobre a derme. Como alguém pode ser feliz num lugar tão quente? O amarelo do sol que jamais se olha; jamais se vê de frente, sempre submissos ao sol. Certo poeta, não me recordo qual, nem se, de fato, se trata de um poeta, disse: o sol e o mal nunca podem ser encarados frente a frente. Um calor de matar. É fácil compreender como no Estrangeiro, ele dizia com a maior sinceridade “matei porque o sol estava em minha cara”. Não é possível antever os crimes que posso cometer nesse calor...

Havia de matar o tédio, comecei tentando achar o nome preciso, um nome ou expressão que desse conta do calor que faz hoje, achei fácil: que calor du caraí. Mas o calor não cedeu um grau sequer a minha precisão semiótica. Meu corpo continuava derretendo.

Resolvi visitar os mortos, ir ter com os antigos. Eles sempre me ajudaram, me distraem, levam-me a distâncias, fazem-me pensar que um dia algo foi diferente, e ainda me concedem a impressão de ter aprendido algo. Mesmo com o sol pondo em suspenso toda a história: “nada de novo sob o sol”.

Pois bem, meus queridos mortos, relacionavam absolutamente toda a vida ao clima, aos humores do tempo: seja desgraça ou boa ventura dos povos; quer seja a sensualidade ou a abstenção sexual: calor esbanja, esparrama, derrama, enquanto o frio retêm, anseia guardar para si, distância, posto que, aumenta a proteção entre os corpos, e por aí vai.

Independente do anacronismo, a idéia da sobre-determinação geográfica, isto é, que o meio vai determinar a possibilidade dos viventes, a sua mentalidade, seus costumes já não é mais bem vista entre os vivos, no entanto, penso que, talvez, não estivessem eles (os mortos) tão errados assim. E sinto o dever de dizer sim ao clima, enfim, o melhor a fazer é ir a praia comer ostras (feliz de um bicho que come outro) e tomar uma cerveja...