sábado, outubro 18, 2008

E mais Cegueira


ENSAIO SOBRE A GAGUERIA de Paulo Cursino

O filme começa com um carro fechando o outro em um sinal de trânsito. Os dois motoristas descem do carro prestes a discutir.

MOTORISTA 1
Você não olha por onde anda não, seu viado?!

MOTORISTA 2
Ah! V to-to-tomar no c-c-c-c.... n-no... c--c--c...

A palavra não sai. Motorista 2 tenta a todo custo terminar a sua ofensa, mas a palavra chula que designa o pequeno e apertado orifício humano insiste em ficar pela metade, ele gagueja de suar e perder a respiração. Ele está com a doença da gagueira e ainda não sabe. Motorista 1 entra no carro com medo de ser contaminado e sai batido.

Corta para uma padaria do centro da cidade. Um homem entra e se dirige ao dono da padaria que está no caixa.

HOMEM
Por favor, me vê um maço de Marlboro.

DONO DA PADARIA
Normal ou Lights?

HOMEM
Me vê o... o... o-o-o-o... N-n-n... l-l-l..

O pobre homem não consegue completar a frase. Enraivecido querendo se fazer entender, acaba discutindo com o dono da padaria, os dois brigam de socos e acabam rolando sobre um balcão de sonhos (valorizar a metáfora visual de “sonhos” sendo esmagados).

Da briga anterior, corta para um casal de classe média alta tomando seu café-da-manhã calmamente.

MARIDO
Querida, me passa a mante-te-te... ihhh... tê-tê-tê...

Marido não consegue terminar a palavra manteiga. Tenta se fazer entender de várias formas e não consegue. Até que tem idéia de pegar um bloco na mesa ao lado e escrever a palavra “manteiga” para a esposa. Mas, surpresa: ao tentar escrever “manteiga” o seu texto também é gago. O vírus é mais poderoso do que ele imagina. Ele consegue escrever apenas a letra “M” trinta vezes até sair um “an”. Marido desiste de escrever e pega a geléia que está mais próxima e começa a passar no pão. Mulher tenta perguntar por que marido age feito um idiota, mas pára no “id”. Os dois ficam constrangidos, olhando um para o outro, sem entender o que está acontecendo.

Entra então uma sequência de cenas da cidade em polvorosa. Todos tentam falar e ninguém consegue se entender. Consultórios de fonoaudiólogos lotado de pessoas. Crianças chorando pelos corredores pedindo o colo da “ma-ma-ma-mãe”. Vários pacientes tentam marcar uma consulta, mas a gagueira os impede. Uma simples confirmação de “sim” ou “não” leva uma hora para acontecer. O caos se espalha pela cidade, pelo país. Na bolsa de valores quando alguém consegue dizer que o índice Dow Jones está em alta, ele já está em baixa há vinte minutos. Uma atendente de telemarketing enlouquece quando começa a gaguejar durante a venda de uma assinatura de revista e se suicida saltando pela janela de seu departamento. Jornalistas pelo mundo começam a gaguejar em reportagens ao vivo. No programa do Jô Soares ele leva trinta minutos para concluir uma pergunta. Todos ficam preocupados com o dia que ele contrair a doença...

Corta para uma cena de entrevista coletiva. O presidente Lula ao centro em frente à bancada com microfone.

LULA
Companheiros, n-nunca a-a-antes n-neste pa-pa-pa...

Lula tapa a boca percebendo que não vai poder continuar o seu discurso. Alguns jornalistas suspiram aliviados. Paulo Henrique Amorim culpa a mídia golpista pela gagueira de Lula. Os petistas culpam os tucanos. Sai a notícia que Fernando Henrique, ao que parece, só gagueja em francês. Mas o francês continua perfeito.

Corta para um hospital, um asilo isolado. Todos que contraíram a doença da gagueira estão lá. Em poucos dias o ambiente se torna sujo e fétido porque ninguém consegue falar as palavras “vassoura”, “esfregão” e, a pior de todas, “saponáceo”. Palavras de quatro sílabas passam a ser proibitivas. Proparoxítonas são extintas da linguagem oral em questão de dias. Dentro do asilo, um homem tenta pedir ajuda a um “otorrinolaringologista” e destronca língua no meio da palavra, causando um pequeno pânico interno. Um médico passa a cuidar dele, mas precisa de remédios aos quais não tem acesso. Ninguém entra no hospital com medo de contrair a doença. Soldados atiram em doentes que tentam furar o cerco. Uma simples pigarreada é capaz de selar a vida. Os gagos passam a viver em clima de isolamento total e assistindo a programas de TV mudos, o que, na opinião geral, fez com que a programação da TV brasileira melhorasse em 90%. A comunicação torna-se praticamente impossível e o silêncio toma conta do local. Mas o pior estava por acontecer.

Um grupo de mímicos, recalcados por anos de preconceito e discriminação artística, são os únicos que conseguem se comunicar a contento e passam a dominar o hospital. O que no início era apenas uma ligeira vantagem social passa a ser um verdadeiro instrumento de terror e domínio. Nos aposentos dos mímicos é colocada uma foto de Marcel Marceau na parede, o novo deus a quem eles devem a vida. Dominando a comunicação eles passam a controlar a entrada e saída de alimentos do hospital. Primeiro eles começam a trocar alimentos por dinheiro, objetos de valor e galões de tinta branca para a face. Quando o dinheiro dos gagos acaba, eles passam a exigir sexo das mulheres gagas. A princípio, eles levam três dias para se fazerem entender, afinal, fazer a mímica de um “69” não é tão fácil quanto parece. Quando eles percebem que as mulheres estão fingindo não entender o que eles querem, passam a usar a força bruta e tentam raptar as mulheres. Os homens gagos irritados com a situação tomam à frente e provocam uma pequena rebelião. Durante a rebelião, muitos morrem, o asilo é queimado, e todos escapam e tentam voltar para suas vidas normais.

Então eles descobrem, surpresos, que o mundo lá fora já está normalizado e que eles era os únicos a estarem presos. Para onde eles olham, a vida segue normalmente, mas, mas com a gagueira como padrão. Tornou-se uma coisa completamente normal. Cartazes e out-doors todos estão escritos em linguagem gaga. Em um out-door da Nike lê-se j-j-j-just d-d-d-o i-i-t. Até placas de ruas são gagas. A placa de proibido estacionar, por exemplo, tem um “EEEE” cortado ao meio. Até as que indicam bairros e lugares gaguejam. Em vez de uma placa para o Rio de Janeiro há uma para o “R-rio de J-ja-janeiro”. Em vez de uma placa para Santos há uma para “S-san-san-santos”. Itaquaquecetuba, por sua vez, teve que mudar de nome.

E no íntimo daquelas pessoas recém-liberadas, traumatizadas pela má experiência recente, jazia como uma brasa adormecida, uma dúvida pungente, que obscurecia qualquer possibilidade de visualizar um futuro melhor: com a gagueira como padrão, como deveria soar agora a dança do Créu?

O grupo se abraça, une-se em uma oração, esperançoso, de que ao menos isto não tenha sobrevivido a catástrofe.

Extraído sem autorização do blog: http://www.ignoranciatimes.com.br/index.php

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