Vocês ganharam! batatas e bananas aos srs., aos shopping centers, avenidas, aos carros, sobretudo aos carros, a lei, e que lei! a ordem, e que ordem!
Malditos famas e esperanças, já não lhes basta todo o resto do mundo?
Os cronópios sempre se contentaram com tão pouco, só precisavam beber, dançar, falar alguma língua noturna ininteligível, fumar, e na continuação desta dança torta, protelava a espera dos primeiros raios da Aurora, deusa de róseos dedos, tocar as faces suadas dos dançantes, dos que estavam parados, dos que nem sabiam onde estavam. baratas e ratos a nós! enquanto vocês velhavam, caminhavam, trabalhavam e olhavam de viés.
Seus filhos da puta – vocês ganharam!
Vocês ganharam, destruíram o Garagem, com ele incontáveis cronópios desalojados, de seu lugar sujo, escuro, sem higiene; já disse os cronópios não precisam de muito, na verdade o que vocês jogam fora no principalmente no rio, serviam de sofás, de decoração, figuração, e até mesmo acontecimentos, os cachorros delgados e famintos, os gatos indiferentes a tudo, as baratas e seus caminhos nervosos, os ratos e seu olho sádico de vítima, e sabe-se lá mais o quê... mas era nosso, podia-se ver cronópios esparramados como se estivéssemos num éden qualquer, silentes e tranqüilos em meio ao inferno de gente, agonia e desejo. baratas voadoras...
O horário de abrir não podia jamais ser previsto, o de fechar menos ainda. Apenas a Aurora era garantida. imagino como isso os incomodava, com seus relógios, carros, e avenidas.
A seleção musical jamais me agradou, apesar de surpresas felizes acontecerem, onde ouvirei Cake e David Bowie de novo? até a porra do mangue-bit, que sou particularmente alérgico vai fazer falta.
Ah! sempre me agradava aquela festa cronopiana, espremida, entre a escada de pernas tortas, o balcão que soçobrava objetos, e a pista de olhar lânguido e agitado a falar a língua dos bêbados. dos insones das terças, ou até mesmo na reunião ao acaso dos insensatos da segunda-feira, dos birutas e vassouradas da quinta. SEUS FILHOS DA PUTA!
No Garagem todos podiam ir, até vocês malditos famas, malditas esperanças, mesmo que jamais entendessem, jamais gostassem, jamais estivessem ali, mesmo que achassem sujo demais, barulhento demais, mas os cronópios vivem de excessos, o “demais” era a conta justa. Seus Filhos da Puta! e vocês iam, enchiam o ar com seus medos e pudores, mas era a moda, e como ela é um imperativo aos canalhas de bom coração, lá estavam vocês, com sua boca suja e seu olhar torpe.
Talvez, o único bar na porra desta cidade que não tinha televisão – que não parecia uma hospital.
Vocês conseguiram de um só golpe – que não foi dado por suas mãos, vocês a preferem limpas e distantes – malditos sejam – inúmeros pedaços de acasos, de memórias não somente as que funcionam pra trás – estas eram deliciosas, agora tem um gosto acre na boca – mas, o que é pior, nossas memórias que se dirigiam adiante, à frente do acaso, à memória do devir, da rua, da noite, dos perdidos, dos ocasos. mas só queríamos ficar quietos, perdidos, inquietos, dançando, pulando, bebendo e bebendo, mas quietos, gritando, mas em silêncio.
SEUS FILHOS DA PUTA!
Não faço idéia da idade do Garagem, mas o conhecia ainda no idos do Galetos (apesar de não me lembrar de nenhum galeto como tira-gosto), somente cachaça e vinho ruim e cerveja (sempre gelada).
Imbecis, há muito tempo que qualquer animal sabe que uma cidade não é feita de ruas, avenidas-de-passagem-ao-formigueiro, de prédios-caixas-de-fósforo, de edifícios-latas-de-óleo, arranha-céus-caixa-de-omo, mas de afetos, de acasos, de desejo e da noite, e DA NOITE.
Durmam filhos da puta, ou melhor continuem seu sonambulismo medroso.
Gostaria que essa história de pensamento positivo de fato funcionasse, pois funcionaria o de negativo, à vocês malditos famas e esperanças desejo todo o mal (o que vocês chamam de mal), mas não adiantaria, eles acontecem na mesquinhez de suas vidas e vocês seguem em frente, e trabalham, e jantam, e assistem televisão, e dormem o sono sem sonhos das almas mesquinhas.
Desejo-lhes vidinhas limpas, roupas da ultima estação bem passadas, chefes escrotos, suas empregadas domésticas, filhinhos-marginais-de-condomínio, filhinhas-putas-de-playboy, apartamentos com vista à outros apartamentos, carros, e carros, um para cada cão, cada gatinho, cada animal da família. continuem com medo da rua, não saiam jamais, entupam as boates e restaurantes; a rua nunca foi lugar pra vocês – filhos da puta – seus seguranças particulares, seus condomínios fechados, hospitais particulares, asilos encantados para seus pais – e depois vocês – e depois serem enterrados nas melhores covas da cidade. enfim, o pior é ter a plena consciência de não desejar nada fora do que são suas vidas, suas ROTINAS.
Recebi amigos de São Paulo na sexta passada, e como todo me lembro de minha frase feliz – agora amarga – “vocês tem que conhecer o Garagem! se temos de fato uma cultura recifense, está lá.”
Até mesmo o Sobrecú, o emblemático bloco cronopiano, já fez uma das suas famosíssimas prévias lá... Ah! Quantas noites! Quantas madrugadas vãs, de tédio inquieto, de delírio e resto de perfume misturado a suor, brumas e cerveja...
Ela me ligou hoje, havia acabado de passar na frente: “DEMOLIRAM O GARAGEM” berrava ao telefone, em seguida lançou a pergunta “como demolem um lugar que deveria ser patrimônio histórico?” poizé, demoliram o Garagem.
Agora tento armazenar na memória meus pedaços que foram demolidos junto com os muros, os sofás, o balcão tumultuado de objetos, a pouca luz, o andar de cima, a escada, os banheiros, pedaços de mulheres, pinturas mal feitas, pedaços de desejos invisivelmente gravados naquelas paredes.
Seus grandessíssimos filhos da puta!
– Sr. indigníssimo prefeito e seu séquito, primeiro demoliram a praia, sonham em transformar Boa Viagem num parque – eu acho – ou num anexo de qualquer shopping e agora o Garagem. imagino que sua sede higiênista não poupará o Recife Antigo, quiçá até mesmo nossos mercados, favelas, bares de subúrbio – como? quase me esquecia, isso já começou, no subúrbio onde repouso, a limpeza das pessoas já começou no entorno da praça, e demoliram todos os bares, que viviam repletos de velhinhos com seus rádios de pilha, sua pinga e o limão de cada dia. onde estão agora esses velhinhos? Boa cidadania à vocês – filhos da puta! Finalmente, antes onde havia indiferença a sua indiferente pessoa (uma tautologia ridícula – João é João), ao senhor que não passa da sombra de um homem, não chega sequer a ser o delírio alheio, agora conquistou o meu desprezo, toda minha má fé.
Se pedaços nossos foram demolidos com o Garagem, prometo-lhes senhores esperanças e famas, nossa inquietude só ficará ainda mais nervosa, nossa indiferença está se tornando em ódio velado e silencioso – estamos demasiadamente perto de vocês – sabemos identificá-los, ao contrário dos senhores que não enxergam nada além de um espelho e que evitam (tudo querem evitar). estamos perto, ruidosos e agora rancorosos. Não há coisa mais doentia para um cronópio que a memória, eles não se alimentam dela, eles estão vivos, quando dormem sonham, quando despertam continuam a obra dos sonhos em vida.
FILHOS DA PUTA!
Sr. Anísio Pacheco