quarta-feira, novembro 28, 2007

Provos (pt. 1)

Eles deram o pontapé inicial para a legalização do consumo de drogas na Holanda. Eles transformaram a bicicleta no mais folclórico meio de transporte de Amsterdam. Eles desenharam o uniforme que os Beatles usavam na capa de Sgt Pepper´s Lonely Hearts Club Band.

Como bons anarquistas que eram, os Provos (corruptela do termo "provokatie", ou "provocação") não chegaram a caracterizar um movimento organizado, menos ainda uma ideologia. A intenção desses jovens tresloucados do início dos anos 60 era debochar o mais cinicamente das tradições monárquicas holandesas da Casa Real de Orange e sua protegé , a burguesia consumista - o que, como veremos, conseguiram fazer com o máximo de diversão e ousadia. Ao contrário de seus irmãos caçulas, os românticos hippies, não desejavam mudar o mundo: " Não podemos convencer as massas, e talvez sequer nos interesse fazer isso. O que podemos esperar deste bando de apáticas, indolentes, tolas baratas? É mais fácil o sol surgir no oeste do que eclodir uma revolução nos Países Baixos (...) O homem médio é um comedor de repolhos, improdutivo, não-criativo, emotivo. Alguém que se diverte fazendo fila nos guichês", dizia a primeira de uma incendiária série de edições de revistas "Provo". E ainda: "Provo tem consciência de que no final perderá, mas não pode deixar escapar a ocasião de cumprir ao menos uma qüinquagésima e sincera tentativa de provocar a sociedade".

Os happenings

E assim começaram em 1962, através de um formato que seria permanentemente adotado para zombar do status quo até o fim da galhofa, em 1967: o happening, evento efêmero que mistura arte e performance em locais públicos, criado em 1959 em Nova Iorque e imediatamente assimilado pelos artistas de vanguarda do mundo. Os heterogêneos Provos não eram exatamente artistas, mas tomaram o modelo emprestado e o executaram a sua maneira extravagante, a princípio com o único objetivo de espantar o tédio das conformidades. Happenings bizarros começam a espocar em Amsterdam: um sujeito escancara as portas e janelas de sua casa no auge do inverno, abre as torneiras, deixa a água congelar no chão e chama uma patinadora para exibir-se para os transeuntes curiosos; outro amassa papéis, com os quais recobre seu quarto, a calçada e os carros estacionados, gravando o ruído do amassado para posterior exibição em concertos nesta especialidade; dois times de ciclistas despem-se enquanto pedalam, até chocarem-se nus uns contra os outros. No entanto o caso mais assombroso foi o de Bart Huges, um estudante de medicina que em 1958 havia servido de cobaia nos experimentos com LSD na Universidade de Amsterdam. Huges realizou trepanação na própria caixa craniana (quer dizer, fez um furo no meio da testa com uma broca de dentista) e retirou o curativo para uma platéia ao som de tambores. Ele acreditava que seu "terceiro olho permanentemente aberto" lhe expandiria a consciência para sempre - e, é claro, aproveitou a oportunidade para chocar a massa incrédula.

Os caras eram do barulho, mas se até hoje você jamais havia escutado falar deles, a culpa não é sua. Matteo Guarnaccia explica que, além do simples fato do bando de doidos Provos estar circunscrito à Holanda, alardeando suas causas válidas e idéias cretinas através dos tablóides escritos em holandês, a ele "faltou também aquele megafone fundamental representado pela música pop. Se no mundo anglo-saxão o movimento pacifista e alternativo pôde contar com grupos ou cantores de música folk para amplificar e difundir sua mensagem, nada parecido aconteceu na Holanda, do ponto de vista musical". As excursões Provo para fora da Holanda foram poucas e breves. Passaram pelo Marrocos, Ibiza, ilhas gregas (antecipando-se em pelo menos quatro anos às badaladas migrações hippies) e estabeleceram-se por algum tempo em Londres, tornando-se ícones da casta de artistas psicodélicos. Foi quando desenharam os figurinos de Sgt Pepper´s, e a Provo Marijeke Koger tornou-se a grande estilista dos malucos ingleses, aproveitando para executar um happening onde fez a dança dos sete véus inteiramente nua, pintada com cores fluorescentes.

Cigarros, só Marihu

Foi em 62, com Robert Jasper Grootveld, que a saga começa a tomar um formato mais ou menos definido. Grootveld, um fumante inveterado, decide começar uma hilariante campanha antifumo por Amsterdam, por onde anda totalmente fantasiado de feiticeiro africano, pintando a palavra "câncer" sobre todos os cartazes publicitários de cigarros das ruas. Foi preso algumas vezes, chegando, gratuitamente, às mesmas páginas de jornais que as corporações de tabaco pagam milhões para anunciar. Uma vez solto, usou um casebre velho numa região boêmia para realizar rituais antifumo que atraíam cada vez mais pessoas; mais tarde, transferiria os eventos para a praça Spui que, além de exibir uma estátua presenteada pela Hunter Tobacco Company para a cidade, ficava estrategicamente próxima à maioria das redações dos jornais


Grootveld fantasiado de feiticeiro em uma campanha antifumo.

Grootveld, riscando uma propaganda de cigarro.

Em 64, no clímax de seus protestos, já considerado um herói na cidade, Grootveld junta-se a Bart Huges para lançar o Marihu Project, um plano para reivindicar a legalização da maconha (afinal consideravam o cigarro uma "droga legalizada") e tirar um sarro da polícia. Espalharam por Amsterdam centenas de maços pintados à mão com desenhos fluorescentes, contendo baseados feitos com folhas secas catadas dos parques, algas, palha, pedaços de cortiça e também, naturalmente, a boa e velha cannabis. Concomitantemente, fazem circular cartas com as regras do jogo: "Cada um pode fabricar sua Marihu (...) Cada qual pode criar suas próprias regras, ou omiti-las". O happening é um sucesso retumbante, em pouco tempo as centrais telefônicas da polícia estavam congestionadas com chamadas anônimas de cidadãos denunciando os próprios vizinhos como usuários de maconha, a maioria delas feitas pelos próprios Provos para causar confusão. Os homens da lei são obrigados a um ritmo de trabalho estressante, chegando a declarar para a imprensa que a situação começava a se tornar "problemática". Grootveld observa, muito apropriadamente: "Para dar caça a alguns consumidores de erva, uns agentes, notórios consumidores de nicotina, efetuam incursões-surpresa, que depois são propagandeadas na imprensa, mediante artigos escritos por jornalistas amiúde alcoolizados e lidos por um público que, por sua vez, é escravo da televisão ou da nicotina. Quem tem direito de dizer ao outro que não deve consumir uma determinada substância?"

Imagens:
Internationaal Instituut voor Sociale Geschiedenis

Um comentário:

  1. Ninguém lê este blog mesmo... a não ser alguns alemães, austríacos, romenos e chineses...
    Mas vamos lá...
    Eu sou completamente aficcionado pelo Provos. Tenho até um livro em edição original deles.
    A idéia de crítica prática à sociedade sem teleologia, absolutamente sintonizada com a idéia de micropolítica teorizada por gente como Foucault e Deleuze, foi provavelmente a mais bem sucedida das contra-culturas. Porque não virou fenômeno pop, e porque resultou em modificações efetivas no stablishment.

    Num país super desenvolvido como a Holanda, hoje executivos e políticos vão ao trabalho de bicicleta. Os centros históricos têm acesso restrito a automóveis e a política com drogas é o menos hipócrita possível.

    Será que o nosso Brasil não pode aprender nada com isso?

    Vou fixar nos automóveis, esta praga que faz o trânsito de SP aquela coisa insuportável com centenas de quilômetros de engarrafamentos.

    Porque, em nome de D'us, o brasileiro (todo ele apaixonado por carro!?!? :-P) não consegue enxergar o limite entre status e conforto diário?
    O carro já há muito (ou desde sempre) deixou de ser um utilitário para ser uma extensão simbólica do indivíduo, sua cara na paisagem urbana das ruas e avenidas.
    O governo se desdobra em mil fazendo túneis, elevados, novas estradas, fodendo mais ainda com a natureza e a vida urbana, concentrando esforços em preço de combustível e esquecendo completamente a verdadeira extensão do problema "TRANSPORTE PÚBLICO".

    A classe média brasileira - o que dizer da burguesia, então! - simplesmente abomina a idéia de usar ônibus e metrô. Mas fica cada babaca no seu carro (normalmente UM BABACA POR CARRO), promovendo filas imensas e sinfonias buzínicas (por quê não proibem a fabricação de carros com buzina, heim!!?!?), como o mais avançado símbolo da nossa civilização.

    Acordai, pedalai, lutai por uma cidade saudável, ó povo brasileiro!

    Para quê seguir os péssimos exemplos que já estão dados por aí!?

    Um dia, de tanto carro na rua, a porra toda pára. Ah, mas tem o rodízio... claro... aliás, acho que é o que as classes médias gaúchas, bahianas, mineiras, pernambucanas, goianas etc mais querem... mostrar que são grandes metrópoles porque fazem rodízio.

    Caralho, ninguém segura a ordem do discurso! Tampouco a do discurso auto-maquínico deste nosso adorável tosco mundo.

    Belos Provos,
    Bela postagem!

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