segunda-feira, novembro 12, 2007

De Haas van Utrecht

Na manhã do dia 17 de fevereiro, eu estava em uma das minhas andanças pelos Países Baixos. Na ocasião, eu estava acompanhado de um amigo brasileiro e de um casal. Estávamos na cidade de Utrecht, no sul. A idéia era passar por lá, encontrar o casal e pegar uma carona em direção a Maastricht, onde estava acontecendo o carnaval de rua. Nos Países Baixos não existe uma festança de carnaval. Apenas as cidades do sul, freqüentemente católicas, têm carnaval. Os indícios da festa eram claros. Muitas enfermeiras, padres, mecânicos, freiras, bárbaros e super-heróis variados davam um colorido distinto e predominantemente laranja do qual eu estava começando a me acostumar nos trens neerlandeses. Usualmente eles eram tristes e silenciosos, com toda aquela gente lendo jornais e fazendo parte do desjejum, enquanto chegava ao destino. Percorremos deliberadamente várias das ruas da cidade, seguindo os passos de nossos anfitriões. Eu, que ainda não tinha me acostumando com frio - e que não estava bem agasalhado -, estava incomodado com a baixa temperatura. Fizemos uma pausa na andança para tomarmos um café. Na saída do restaurante, topamos de frente com um venezuelano que deve ter escutado o nosso português. Ele estava com o rosto acinzentado, em uma mistura de frio e fome, e pedia alguma “plata”. Por sorte, eu levava em minha mochila uma maçã e alguns biscoitos doces. Eu disse para ele que não tinha “dinero”, mas ele aceitou de bom grado o meu lanche. Aquele fora meu primeiro encontro com a fome nos Países Baixos. Justamente um latino-americano. Eu já tinha visto “artistas” de rua tocando nas esquinas, principalmente nos dias de feira. Sempre me recordo do senhor de grandes óculos que tocava “Il padrino” no violino, ou das canções tristes vindas do acordeom de alguém do leste europeu. Também sempre via algumas figuras mendigando e vagabundeando perto da estação central de Leiden. Vez por outra eu esbarrava com alguém vasculhando as latas de lixo da estação ou pedindo, mas aquela foi a primeira vez que eu vi alguém que parecia estar realmente esfomeado.

Foto da lebre

Retomada a caminhada, dei de cara com uma escultura inusitada postada na praça “De Neude”, bem no centro de Utrecht. Era uma grande lebre pensante! Mistura de Pernalonga (Bugs Bunny) com o Pensador de Rodin, ela estava lá no centro da praça. Rapidamente saquei a máquina fotográfica e registrei algumas imagens. Meus companheiros de andança estavam atravessando a rua e eu tive que parar, ajustar o zoom, capturar uma imagem e correr para reencontrá-los. Sequer tive tempo de perguntar quem era o autor e o motivo de terem colocado uma lebre de bronze no meio de uma antiga praça. Qual teria sido a piada que levara a prefeitura permitir tal estátua no centro histórico de Utrecht?
Depois de ter voltado para casa, eu comecei a pesquisa. Eu não percebi que a figura sentada em uma grande pedra era uma lebre e comecei a procurar no dicionário de neerlandês a palavra coelho (konijn).

Depois de olhar a foto por um tempo, eu percebi que a criatura tinha as pernas e as orelhas muito longas. Lembrei-me também de Pernalonga. Ele não era um coelho, mas uma lebre. Haas, em neerlandês. A lebre pensante de Utrecht, pensei eu. Fui ao Google e digitei: “De Haas van Utrecht”. A pesquisa revelou parcialmente o que eu queria. Feita em bronze pelo escultor britânico Barry Flanagan (1941), a “Lebre pensante de Utrecht” foi escolhida por votação popular para ficar na praça no ano de 2002. Ela concorreu com outras obras, todas expostas no “Centraal Museum” de Utrecht. Foi selecionada com cerca de 83% dos votos. Flanagan parece ter uma obsessão pela figura da lebre, que está presente em grande parte da suas obras. A partir de 1979 ele começou a esculpir esse animal em cenas dinâmicas. Várias lebres pensantes foram esculpidas por ele e expostas em outros parques de cidades como Chicago e New York. A praça “De Neude”, antes local de execução de criminosos e recentemente utilizada como estacionamento, ganhava um novo inquilino. Talvez a intenção fosse deixar a praça mais agradável. Aos passantes, a lebre dá um toque de humor a um local que por anos teve seu chão manchado de sangue. Eu não tinha a intenção de escrever essas informações desencontradas. Mas eu também não queria jogar as fotos da lebre sem uma explicação prévia. Também não sei o porquê da escolha da estátua de Flanagan para a praça. Talvez porque ela fosse mais agradável do que as suas concorrentes.

Foto encontrada na internet

Detalhe

A caminhada por Utrecht continuou e até ganhamos algumas latas de cerveja de um desconhecido que se desencontrou dos amigos para uma bebedeira combinada. Mas o que marcou a minha ida a Utrecht foi a lebre pensante.

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